quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Aprendendo com os não ouvintes: um convite ao diálogo.

Por Naara Pereira da Silva Castro.

A leitura de Vendo Vozes: Uma viagem ao mundo dos surdos, de Oliver Sacks(2010),teve no mínimo dois efeitos sobre meu pensamento, o primeiro, fez- me sentir, como o autor, em um abismo de desconhecimento sobre a atividade intelectual dos surdos, mais do que isso, fez-me parar e ouvir sobre o esvaziamento do próprio sentido da existência perdido pela não apropriação de uma língua. O segundo abriu um processo de reflexão em cascata, que me possibilitou elencar algumas questões, para as quais careço maior estudo e observação dos cotidianos, os quais são repletos de linguagens:
Qual seria a experiência de pessoas que, embora ouvintes vivam em estado de surdez profunda, se de repente dessem conta de que aprisionaram a linguagem na ensurdecedora palavra falada/escrita? Drumonnd já nos dizia que “a luta com palavras é uma luta vã”, ao passo que do lugar de ouvintes/falantes não nos permitimos realmente ouvir, sentir em nossas aprendizagens cotidianas as preciosidades dos diferentes sons dos quais nos tornamos cativos, mas cativos da reprodução, do fascínio pelo domínio de um discurso que empodere. Assim, pouco ouvimos, pouco apreciamos a dádiva de poder ouvir as diferentes vozes ecoantes em nosso mundo contraditório. A contradição é a marca de nossa condição humana, já que somos nós, humanos, quem cria e recria o mundo a cada novo dia. Por que ao invés de lutar pela posse da palavra não nos deleitamos com os múltiplos sentidos que elas carregam e não nos permitimos perscrutar as vozes não ouvidas, silenciadas, apagadas por manifestarem outra forma de ser e estar no mundo?
Tal leitura me remeteu ainda à intrigante investigação de Vygotsky sobre pensamento e linguagem, levando-me à ampliação das perguntas que movem meu querer saber, formulando assim, outras questões enquanto lia a obra, dentre as quais: A dimensão humana vem pela linguagem ou pela cultura? E à medida que avançava nas páginas fui construindo saberes e compreendendo que a linguagem está na cultura, se faz e refaz na cultura.
E de fio em fio cheguei à minha pesquisa, a qual investiga a apropriação da linguagem escrita pelas crianças de classes populares, na escola pública. Tendo como foco compreender por que as crianças, que na vida cotidiana são capazes, criativas e inovadoras fracassam na escola na aprendizagem da linguagem escrita, faço agora uma ponte perguntando-me qual seria a relação entre os sujeitos interditados de linguagem por conta de uma surdez e as crianças ouvintes na apropriação da linguagem escrita? Não estaria na forma como a linguagem é concebida e, por conseguinte tratada nas práticas alfabetizadoras a grande questão para se rediscutir a alfabetização?
Acompanhando as narrativas de Sacks, nas quais as histórias de surdos congênitos no enfretamento dos limites apresentados ao processo de interação social e a emergência de significar uma língua para construir um sistema de linguagem que lhes permitam articular o pensamento, construir imagens e a própria consciência de si, ajudam-me a pensar que na linguagem se consolida a passagem da inteligência prática para a abstrata. Dessa forma, indago o que é feito em nossas classes de alfabetização, nas quais em muitos contextos, não poucos, a linguagem fica de fora, o que se apresenta à criança é a representação de uma técnica?
Temos acompanhado uma vasta literatura a respeito do fracasso das alfabetizações, principalmente no contexto das escolas públicas, mas que espaços têm sido oferecidos às crianças de interação com a linguagem? Os municípios buscando a elevação dos índices de aproveitamento dos alunos vêm mudando as propostas, investindo em programas cujos métodos, não consideram as linguagens nas quais a criança aprendeu a se comunicar e a significar o mundo.
Como dizer se nossas vozes de professoras alfabetizadoras são silenciadas, desqualificadas e intrepidamente desautorizadas a pensar? Convido outros pesquisadores, professores alfabetizadores ao diálogo. Ainda que não tenhamos respostas façamos perguntas, elas nos movem, fluem em inquietações, provocam a reflexão da prática, buscam conexões itinerantes, quem sabe desviantes.
Referência:
SACKS, Oliver W. Vendo Vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. São Paulo: Companhia das letras, 2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário